Documento de posição conjunta da Wetlands International, Mupan, CPP e INAU acerca dos incêndios no Pantanal

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Documento de posição conjunta da Wetlands International, Mupan, CPP e INAU acerca dos incêndios no Pantanal

Introdução

A Wetlands International é uma organização global, não governamental, sem fins lucrativos, que tem por objetivo conservar e restaurar as áreas úmidas para a natureza e as pessoas. Ao longo dos mais de 80 anos de história, a instituição tem cumprido um papel singular na conservação desses ecossistemas vitais para o planeta e atuado em defesa das áreas úmidas e seus valores nas convenções internacionais no cumprimento da sua missão de preservar e restaurar as áreas úmidas, seus recursos e biodiversidade.

A Mupan – Mulheres em Ação no Pantanal, organização não governamental sem fins lucrativos, atuando há mais de 20 anos, tem como compromisso facilitar processos na defesa da igualdade de gênero, por justiça social e melhor distribuição de recursos naturais, buscando ser uma instituição de referência no empoderamento de lideranças, principalmente mulheres, para a defesa de seus territórios com autonomia, resguardando modos de vida. Desde 2017 a Mupan hospeda o escritório Brasil da Wetlands International.

O Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP) tem como missão contribuir com a sustentabilidade ambiental, social e econômica de Áreas Úmidas, integrando competências e funcionando em estrutura de rede. Busca contribuir para o bem estar da população pantaneira, tendo em vista a sustentabilidade da região, reconhecendo a dimensão internacional do Pantanal. É a entidade responsável, junto com a Universidade Federal do Mato Grosso pela implantação do Instituto Nacional de Áreas Úmidas (INAU).

O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (INAU) é referência no conhecimento científico sobre áreas úmidas no Brasil e no mundo. Coordenado pelo Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP), o INAU foi criado em 2008 com objetivo de produzir conhecimentos considerando as características das áreas úmidas visando levantamento e desenvolvimento de um sistema de classificação para fins de políticas públicas.

À luz dos recentes incêndios no Pantanal, essas instituições reuniram informações de cunho técnico para substanciar o diálogo e se posicionar frente ao momento.

Antecedentes

A Bacia do Alto Paraguai, que abriga o Pantanal, maior área úmida tropical do mundo, vem enfrentando um dos períodos mais secos desde o início dos registros. Diminuição dos níveis de precipitação, longas estiagens e consequente baixa nos níveis dos principais rios ameaçam a existência do bioma mais conservado do Brasil.

O rio Paraguai, principal leito hídrico do bioma pantaneiro, vem apresentando sucessivas quedas em seu nível da calha principal, apontando para uma vazante fora de época na porção sul do Pantanal, com diferença de mais de 2,5 m entre os níveis de 2019 e 2020.

Segundo dados dos Boletins de Monitoramento da Bacia do Alto Paraguai, expedidos pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM), “em todas as estações de Monitoramento Fluviométrico, os níveis registrados encontram-se abaixo dos níveis normais para este período do ano. Não foram registradas chuvas significativas e, mesmo as chuvas previstas na parcela sul da bacia não terão impacto significativo nos níveis do Rio Paraguai”. Tais dados indicam a seca mais severa em 22 anos, culminando no fato de que quatro das 12 estações de monitoramento atingiram, no mês de agosto, níveis mínimos históricos, de acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

Ainda segundo os boletins, “dados da estação Porto Murtinho sugerem que, na média, a bacia do rio Paraguai apresentou chuvas abaixo dos níveis em quatro dos últimos seis anos na bacia e uma tendência de redução de chuvas nos últimos anos. Considerando a chuva média de longo termo estimada pelo INPE, de cerca de 1.290 mm para a parcela brasileira da bacia do rio Paraguai, o déficit de chuva com relação à média vem se acumulando há alguns anos, o que pode explicar a condição atual da bacia, de níveis bastante abaixo dos médios”.

O aumento na amplitude dos eventos meteorológicos provoca estiagens prolongadas e chuvas em períodos concentrados, ocasionalmente causados pelos fenômenos atmosféricos. De acordo com o pesquisador Jochen Schongart (INPA/INAU), os regimes de chuvas e, em consequência, os ciclos hidrológicos do Pantanal, têm forte influência da Oscilação Decadal do Pacífico e do El Niño. Outra grande circulação atmosférica que influencia o clima e a hidrologia do Pantanal é a Oscilação do Atlântico Norte. Mais de 50% da variabilidade de chuvas e dos pulsos de inundação podem ser explicadas por anomalias dessas oscilações climáticas em larga escala.

Secas extremas nos últimos nove meses nos estados do Pantanal intensificaram a situação de vulnerabilidade e o risco de incêndios. Alguns estudos sugerem que o final de um grande período de influência do El Niño é seguido de longas estiagens e períodos de ampla variabilidade meteorológica, com diminuição da pluviosidade, incluindo as épocas de muita chuva, como os meses de novembro a março. No entanto, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) disse haver uma probabilidade de 60% de ocorrência do evento climático La Niña, de intensidade fraca, no período entre setembro e novembro deste ano. A agência das Nações Unidas publicou a atualização sobre El Niño/La Niña, apontando que deverão predominar temperaturas acima da média, apesar da tendência de La Niña ser de baixas temperaturas globais.

Além das condições locais, o desmatamento na floresta amazônica também influencia e potencializa as queimadas no Pantanal, uma vez que as chuvas provocadas pelos rios voadores naquela região contribuem para as cheias na planície pantaneira. O desmatamento causa alterações na dinâmica de chuvas, que se concentra em poucos dias e em grande volume; isso não permite que a planície absorva a água e alimente o lençol freático.

As condições hidrológicas associadas ao uso deliberado do fogo no Pantanal, decorrente da necessidade de promover a rebrota do pasto nativo para a criação de gado no modo extensivo, também podem ter intensificado os incêndios e, consequentemente, causado grandes perdas para o bioma. No entanto, a grande problemática do manejo inadequado pode ter uma alternativa com boas práticas de uso da paisagem, inclusive o fogo prescrito.

Para expedir a autorização para a queima controlada do pasto, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) passou a cobrar uma taxa por hectare. Os proprietários argumentam que a quantia se torna exorbitante mediante o tamanho das áreas a serem manejadas. Como consequência, a queima é praticada sem autorização ou orientação. Em uma escala menor, durante o período de seca, os eventos naturais de fogo são frequentes, embora mais localizados se comparados a outras savanas do mundo. As ocorrências naturais são iniciadas por descargas elétricas atmosféricas: os raios realizam a ignição e provocam incêndios. Geralmente esses focos são interrompidos pela chuva que vem logo em seguida, queimando somente os materiais combustíveis disponíveis: folhas, galhos e tocos, já mortos e secos. No entanto, a vegetação que fica sob os pântanos, rica em biomassa, torna-se seca e altamente inflamável, deixando grandes depósitos de matéria orgânica de solo e queimando por muito tempo após as chamas visíveis terem sido apagadas.

Com chuvas diminutas no período de cheia na porção norte da bacia, “faltou” água na porção sul, fazendo com que o ano de 2020 iniciasse com recordes nos números de focos de incêndio, superando a média para o período e atingindo o número de 602 em março, o maior registro para o mês desde 1998. O acúmulo de focos no ano ultrapassa os 15.000, com mais de 2,35 milhões de hectares queimados – equivalente a 12 vezes a área da cidade de São Paulo. Apenas na primeira quinzena de setembro, ultrapassou-se o número de focos de calor contabilizados de janeiro a julho (figura 1).

Figura 1: agosto teve mais queimadas que os sete primeiros meses de 2020.

De 2019 para 2020 o Ibama, órgão responsável pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo) teve um corte no orçamento na ordem 20%, seguindo a lógica vigente nos últimos anos de diminuição de verbas e fragilizando o combate e prevenção aos incêndios em todo Brasil. Outras medidas, como atraso de repasse de recursos aos órgãos locais, baixo investimento em brigadas e precariedade das políticas preventivas, educativas e punitivas para ações ilegais de desmatamento e queimada, tornam ainda mais difícil conter os impactos. Mais recentemente, em 27 de agosto do ano corrente, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) anunciou outro corte, de 50% da verba anual, orientando para a consequente finalização imediata das operações de combate ao fogo na Amazônia e no Pantanal. A medida foi revogada no mesmo dia, porém, o fato alerta para o baixo compromisso governamental em investir em ações, mesmo que emergenciais, para o meio ambiente.

Envolvimento da Wetlands International, Mupan, CPP e Inau

Desde 2017, a Wetlands International implementa na região o Programa Corredor Azul: conectando pessoas, natureza e economias ao longo do Sistema Paraná-Paraguai de Áreas Úmidas, que possui três áreas focais: Delta do Paraná e Esteros de Iberá, na Argentina, e o Pantanal, no Brasil.

A fim de implementar esse programa, buscou-se criar condições para a realização de atividades, estabelecendo parcerias estratégicas com instituições renomadas nos estados do Pantanal, nomeadamente o CPP, o INAU e o Sesc Pantanal, no Mato Grosso, e o Território Indígena Kadiwéu, em Mato Grosso do Sul – locais imensamente afetados pelos recentes casos de incêndios.

Em parceria com CPP e INAU, a Wetlands International apoia a criação de modelos de gestão de Sítios Ramsar, utilizando os macrohabitats como unidades de gestão territorial e ambiental, tendo como piloto a gestão do Sítio Ramsar RPPN Sesc Pantanal.

Ainda com objetivo de melhorar a gestão de áreas protegidas ao longo do Corredor, a Wetlands International, em parceria com Mupan, desenvolveu o Plano de Vida do Território Indígena Kadiwéu – uma área de 538.535 hectares localizada nos municípios de Porto Murtinho e Corumbá em Mato Grosso do Sul, a maior terra indígena do bioma.

O fogo é a realidade cotidiana dos 20 indígenas da ABINK – Associação dos Brigadistas Indígenas da Nação Kadiwéu, que reúne os brigadistas temporários do PrevFogo/Ibama no território. Conta-se hoje, em média, com 25 pessoas para todo território Kadiwéu e arredores. Nos primeiros oito meses do ano de 2019, somente no nesse território, mais de 600 focos de incêndio foram contabilizados. No mesmo período de 2020 foram mais de 700, um aumento de 16%.

Na porção norte do Pantanal, a Reserva Particular do Patrimônio Natural Sesc Pantanal (RPPN Sesc Pantanal), a maior reserva privada do Brasil, conserva aproximadamente 2% desse bioma em seus 108 mil hectares, compreendidos entre os rios Cuiabá e São Lourenço, no município de Barão de Melgaço, Mato Grosso.

A RPPN possui hoje a maior e mais especializada brigada de incêndios do Pantanal, com quadros permanentes e sazonais, contratados para a época de fogo. Até o final do mês de agosto de 2020, mais de 40% da reserva, ou seja, mais de 40 mil hectares, já haviam sido consumidos por focos de incêndio iniciados nas redondezas e que perderam o controle, avançando para dentro da RPPN no início do mês (figura 2).

O Sesc Pantanal abriga ainda a Base Avançada de Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso, sendo referência na produção cientifica sobre áreas úmidas, e modelo de gestão de unidades de conservação no Pantanal.

Além dos recursos conjuntos com a Wetlands International, a Mupan iniciou, em parceira com o Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP) e o Sesc Pantanal, a implementação do Projeto  Recuperação de florestas ribeirinhas pantaneiras: beneficiando água, solo, peixes e populações do entorno da rppn Sesc Pantanal, financiado pelo GEF (Global Environment Facility) e gerido pelo Fundo Brasileiro para Biodiversidade (FUNBIO) como forma de recuperar áreas degradas na região do Sesc Pantanal, estabelecendo protocolos-piloto de restauração em áreas úmidas tropicais.

Figura 2: avanço dos focos de incêndio na região da RPPN Sesc Pantanal, Transpantaneira e Parque Estadual Encontro das Águas, em Mato Grosso. Elaboração: Pedro Cristofori/Wetlands International.

Em outubro de 2019 a Wetlands International já havia publicado uma carta com as possíveis causas e algumas recomendações para evitar grandes perdas de biodiversidade decorrentes do fogo na região do Pantanal, chamando à ação contra uma catástrofe anunciada. Agora urge que medidas de curto e longo prazo sejam tomadas para reduzir os incêndios descontrolados e garantir a saúde de todo sistema socioecológico.

Posicionamento

Diante do exposto, é evidente a necessidade de construir novas estratégias e ações urgentes e futuras para a redução e a gestão dos incêndios no Pantanal. As instituições aqui reunidas:

  1. Reiteram a proibição do uso do fogo para limpeza de pastagens fora dos períodos permitidos pelos órgãos ambientais responsáveis, devido ao perigo de provocação acidental de incêndios de grandes proporções, causando danos irreparáveis ao sistema socioecológico;
  2. Cobram dos estados e do governo federal compromissos efetivos alinhados ao compromisso globais climáticos da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança no Clima (UNFCCC) e atendimento às Contribuição Nacionalmente Determinada (NDCs), cumprindo o importante papel das convenções climáticas, como o Acordo de Paris e o Protocolo de Kyoto;
  3. Opõem-se aos cortes sucessivos dos recursos para os órgãos ambientais, como IBAMA e ICMBio, inserindo os recursos do meio ambiente no contexto hostil do jogo político-partidário, fragilizando todos os esforços bilaterais de controle e prevenção aos incêndios e ao desmatamento;
  4. Reiteram a preocupação com ações humanas que aceleram a drenagem de água do Pantanal durante a vazante e a seca, aumentando a exposição de grandes áreas ao risco de fogo, sendo contrários a qualquer alteração nos cursos d’água e pulsos naturais de inundação (p. ex., drenagem de áreas pantanosas);
  5. Destacam a importância das áreas protegidas e unidades de conservação como aliadas na saúde e conectividade ambiental dos ecossistemas, assim como o papel-chave que cumprem na produção cientifica e na gestão dos recursos naturais, quando providas de recursos que garantem o manejo adequado;
  6. Reforçam a urgência de uma norma legislativa específica para o bioma pantaneiro e reiteram a necessidade de incluir os esforços históricos da sociedade civil nas propostas legislativas, abrangendo holisticamente as necessidades do Pantanal de forma participativa e consultada.
  7. Chamam a atenção dos órgãos internacionais, em especial da Convenção de Ramsar, União Internacional para Conservação da Natureza (UICN) e demais convenções globais, para a catástrofe ambiental, biológica e de desequilíbrio de todo ecossistema pantaneiro causado pelos incêndios desmedidos, para que cobrem dos países signatários medidas efetivas.
  8. Reforçam a importância dos acordos regionais para a conservação da integridade de um bioma trinacional como o Pantanal.

Recomendações

Recomenda-se prioritariamente a instituição de um Núcleo de Inteligência, Prevenção, Manejo e Combate do Fogo, de referência e orientador, que congregue órgãos governamentais, de ensino e pesquisa, setor privado, sociedade civil, representações de comunidades locais e áreas protegidas, compartilhado entre os estados do Pantanal e instâncias federais.

Recomenda-se ainda:

  1. Fortalecer parcerias público-privadas a fim de instalar bases permanentes de emergência e rápida resposta aos incêndios, utilizando e fortalecendo infraestruturas existentes e subutilizadas na região;
  2. Maximizar esforços para o estabelecimento de um programa de pesquisas em metodologias de manejo integrado do fogo (MIF) adaptado às condições ambientais do Pantanal, promovendo capacitações;
  3. Fomentar os instrumentos e instâncias de monitoramento do fogo, identificando suas causas e buscando medidas para minimizá-los e/ou controlá-los;
  4. Fortalecer uma rede de pesquisa internacional a fim de subsidiar, com intercâmbio de experiências e produção de evidências cientificas, as instituições que estão à frente do combate e prevenção do fogo;
  5. Fortalecer fóruns de discussão de assuntos de interesse comum sobre o Pantanal com participantes das diversas instituições que, reunidos periodicamente, divulguem dados recentes, incentivando o intercâmbio e a cooperação entre os diferentes atores envolvidos, socializando a informação;
  6. Instalar, conforme demanda, mecanismos de mediação e espaços de concertação para eventuais conflitos entre segmentos sociais que possam emergir ou ser intensificados pelos incêndios e suas implicações, reduzindo as tensões entre setores e trabalhando com posturas propositivas;
  7. Considerar os custos sociais, econômicos e ecológicos decorrentes dos incêndios, revertendo valores equivalentes em investimentos para medidas preventivas e políticas estruturantes;
  8. Estimular a criação de um fundo permanente de acesso emergencial para a recuperação pós-incêndios e que futuramente esteja apto a apoiar a prevenção;
  9. Garantir infraestruturas de recursos básicos às unidades de conservação, possibilitando o manejo adequado e maximizando o cumprimento dos objetivos de conservação da biodiversidade;
  10. Criar condições e fortalecer mecanismos existentes para manejar integradamente o fogo, podendo prevenir que situações como essa voltem a se repetir;
  11. Desenvolver políticas específicas e estratégias orientadas às comunidades tradicionais e seus territórios, incluindo treinamentos, equipamentos, instalação de sistemas de monitoramento inclusivos e acessíveis, entre outros, conforme consultas locais.

Mais informações: [email protected]

Documento de posição:

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